sábado, 24 de março de 2012

'O que diria uma fotografia se pudesse mentir?'






'o que diria uma fotografia se pudesse mentir? 



houve uma hora em que fui mais feliz do que em todas as outras, do que se pode ser, e tu estavas lá e todos os meus músculos existiam. já ouvia o eco que a neve faz ao cair no mar mas a tua mão a tatuar a madrugada da minha… 

agora é o tempo suspenso no cigarro vazio por dentro da solidão 

e não fiquei como prometi ficar. e não fiquei como nas noites à tua cabeceira os panos frios a tua febre as sopas as orações a um deus que nunca vi pedro e inês e não fiquei como prometi a ver o teu avião subir e não me passou pela cabeça correr para ti em câmara lenta tudo correr e parar a dois centímetros milímetros de ti e não vás e juro que não me passou pela cabeça e nem sequer olhei para trás que não há finais felizes, não há. 

e o que diria a minha fotografia se te pudesse mentir? 

o meu mundo ainda te olha e da janela do nosso quarto não há distância que a tua ausência nunca me deixou e nunca me deixou ser mais do pedaços e sabia que me ias destruir, sempre soube, e deixei. só nos destrói quem nós muito intimamente queremos que nos destrua. percebes isto? escolhi-te. 

e não fiquei como prometi ficar a ver o teu avião subir por entre as minhas lágrimas, não, não chorei e não fiquei para tu não veres que não chorei para tu hoje muito longe embora deste quarto de onde o meu mundo ainda te olha não exista distância, continuo a escrever para ti que não sei fazer mais nada e a conversar com o jeff no gira-discos e a edith também me visita mas só nos dias mais tristes, nos dias em que a minha solidão me contempla me deseja e me despreza me despreza 

e a nossa fotografia se pudesse mentir? 

voltarmos ao caminho um do outro, partilharmos a nossa cama que eu partilhei com outras e não me custou acredita a cama e despertares com beijos flores raras mentiras daquelas que só se inventam para quem importa e tu no aeroporto e eu a atravessar a cidade inteira sem encontrar o caminho para casa e sem olhar para trás e neste momento sei o que dirias ao meu ouvido abraçando-me por trás sei o que dirias e não interessa porque não faria qualquer diferença porque o destino nem sempre obedece ao destino porque tu muito longe porque eu nesta carta muito longe também das promessas antigas da nudez lunar da casa das nossas noites esconderijo de sal onde incendiávamos os dias.'



Carlos Soares em Cartas a Paris

6 comentários:

  1. é de mim ou este blog cada vez tem mais qualidade?

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  2. Oi Maria,
    O texto é lindo! Vc tem razão de gostar um bocado de "Cartas a Paris" e de divulgá-lo.
    Beijos 1000 e um final de semana maravilhoso para vc.

    www.gosto-disto.com

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  3. "Só nos destrói quem nós muito intimamente queremos que nos destrua" - verdade!
    Desconhecia este texto e esse blog. Gostei muito, mesmo!
    Bom fim-de-semana :)

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  4. Que texto lindo...

    Seu blog é uma graçinha. Já seguindo. Siga meu blog tambem, flor...

    Bjuss

    www.mundodajulia13.blogspot.com

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  5. É pah!
    Que palavras fantásticas!
    Gostei, gostei mesmo de para uns segundos e ler, ler até ter quase vontade de chorar.
    Fantástico.
    Gostei.

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Obrigada pelo seu comentário :)

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